sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA E VISITA NO ABRIGO SÃO JOSÉ - JANEIRO

     Hoje participamos da Celebração Eucarística  no Abrigo São José, celebração presidida por Frei Francisco Pereira. 
     Após a celebração fomos visitar os moradores do Abrigo.
      
 1ª leitura



                                  Agente pastoral Milza fazendo as preces

                                  Agente pastoral Batista fazendo as preces


          Karen, do Shekinah desejando um feliz aniversário para oSr.Antonio João,morador do Abrigo
                                                   Grupo Shekinah com os Agentes pastorais
                     Agente pastoral Vitoria em dinâmica com os moradores do Abrigo
                                        
Vitoria fazendo leitura

sábado, 25 de janeiro de 2014

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2014 - CAPACITAÇÃO

     Hoje durante todo dia, participamos da  capacitação com outras paróquias da diocese de Parnaíba, da Campanha da Fraternidade 2014 - "Fraternidade e tráfico humano". Pe. Carlos Seixas fez a abertura e Jurandir fez o Ofício das Comunidades.  
 Na  dinâmica  de apresentação (Prof. Jaime  se  apresentando)
 Resultado da dinâmica de  apresentação colado no quadro branco
 Srª Francisca Machado, palestrante da capacitação sobre a CF 2014
 Prof, Jaime apresentando  resultado do  trabalho em grupo

 Hora do lanche


 Grupo  "da fé", dramatizando sobre tráfico humano


Componentes do grupo: "Da fé"
 
 Grupo "Esperança" dramatizando sobre tráfico humano com fins sexuais





 Componentes do grupo: "Esperança"
 Grupo: "Unidos a Cristo", dramatizando sobre tráfico de órgãos.








 Componentes do grupo: "Unidos a Cristo"
 Grupo " Vida que renasce",  dramatizando sobre Tráfico de recém nascido





     Participaram representantes  das paróquias de: Bom Princípio, Buriti dos Lopes, Cocal, Esperantina, Ilha Grande do Piaui, Joaquim Pires, Luzilândia,  Pedro II, Piracuruca e São João da Fronteira.  De Parnaíba: Nossa Senhora da Graça, Nossa Senhora de Fátima, Sagrado Coração de Jesus, Santo Antonio de Santana Galvão  e São Sebastião.
     Na manhã do 26, Dom Alfredo esteve conosco, onde fez sua fala  sobre o tema da CF 2014.   

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

1ª EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO (Conclusão)


Capítulo V
EVANGELIZADORES COM ESPÍRITO


259. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus.

260. Neste último capítulo, não vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã, nem desenvolverei grandes temas como a oração, a adoração eucarística ou a celebração da fé, sobre os quais já possuímos preciosos textos do Magistério e escritos célebres de grandes autores. Não pretendo substituir nem superar tanta riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a propor algumas reflexões acerca do espírito da nova evangelização.

261. Quando se diz de uma realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária. Uma evangelização com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa, alegre, generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e feita de vida contagiante! Mas sei que nenhuma motivação será suficiente, se não arde nos corações o fogo do Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma evangelização com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito Santo; peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.


1. Motivações para um renovado impulso missionário

262. Evangelizadores com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à atividade. Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão da oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas as instituições eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação». Há o risco de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.

263. É salutar recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande resistência ativa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil; temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.

O encontro pessoal com o amor de Jesus que nos salva

264. A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48). Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós vimos e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova. Não há nada de melhor para transmitir aos outros.

265. Toda a vida de Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora não o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio» (At 17, 23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque esquecemos que o Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que essa mensagem fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário está convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela ação do Espírito, uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do homem, do caminho que conduz à liberação do pecado e da morte. O entusiasmo posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ânsia».
O entusiasmo na evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um tesouro de vida e de amor que não pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir. É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque é capaz de penetrar onde nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor infinito.

266. Esta convicção, porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada, de saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém.

267. Unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última instância, o que procuramos é a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à glória da sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e com perseverança, esta motivação deve superar toda e qualquer outra. O movente definitivo, o mais profundo, o maior, a razão e o sentido último de tudo o resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou durante toda a sua existência. Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu ser «no seio do Pai» (Jo 1, 18). Se somos missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse: «A glória do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8). Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não, para além dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão e das nossas motivações, evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama.

O prazer espiritual de ser povo

268. A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de afeto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se compreende sem esta pertença.

269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação, nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.

270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo.

271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, diretas e contundentes, que não precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.

272. O amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus», e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir». Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a ação do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um lento suicídio.

273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram, no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo.

274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente, precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e reflete algo da sua glória. Cada ser humano é objeto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!

A ação misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito

275. No terceiro capítulo, refletimos sobre a carência de espiritualidade profunda que se traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança. Algumas pessoas não se dedicam à missão, porque creem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e prazeres, se não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade, torna-se impossível ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa maligna para continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque «o homem não pode viver sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância, tornar-se-ia insuportável». No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e glorioso é a fonte profunda da nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda para cumprir a missão que nos confia.

276. A sua ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade, sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz fruto. Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia, no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas da história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam irreversíveis. Esta é a força da ressurreição, e cada evangelizador é um instrumento deste dinamismo.

277. E continuamente aparecem também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as mesquinhices humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma tarefa não nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as mudanças são lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é a mesma coisa quando alguém, por cansaço, baixa momentaneamente os braços e quando os baixa definitivamente dominado por um descontentamento crônico, por uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prêmios, promoções; então a pessoa não baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.

278. A fé significa também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está vivo, que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem do mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos, os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se aqui e além de várias maneiras: como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o punhado de fermento que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa semente que cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre nos pode surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta para florescer de novo. A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!

279. Como nem sempre vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção de que Deus pode atuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes fracassos, porque «trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4, 7). Esta certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste em saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor, seguramente será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas vezes esta fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada. A pessoa sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como, onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio nem um projeto empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um espetáculo para que se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa propaganda. É algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender ver resultados espetaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário. No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura dos braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos esforços.

280. Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26). Mas esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de O invocar constantemente. Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário. É verdade que esta confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a calcular e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!

A força missionária da intercessão

281. Há uma forma de oração que nos incentiva particularmente a gastarmo-nos na evangelização e nos motiva a procurar o bem dos outros: é a intercessão. Fixemos, por momentos, o íntimo dum grande evangelizador como São Paulo, para perceber como era a sua oração. Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações, sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1, 4.7). Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira contemplação, porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa.

282. Esta atitude transforma-se também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou graças ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1, 8). Trata-se de um agradecimento constante: «Dou incessantemente graças ao meu Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus» (1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar incrédulo, negativo e sem esperança, mas uma visão espiritual, de fé profunda, que reconhece aquilo que o próprio Deus faz neles. E, simultaneamente, é a gratidão que brota de um coração verdadeiramente solícito pelos outros. Deste modo, quando um evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais generoso, libertou-se da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e partilhar a vida com os outros.

283. Os grandes homens e mulheres de Deus foram grandes intercessores. A intercessão é como «fermento» no seio da Santíssima Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos novas dimensões que iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos dizer que o coração de Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se manifestem mais claramente no povo.


2. Maria, a Mãe da evangelização

284. Juntamente com o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos para O invocarem (At 1, 14), e assim tornou possível a explosão missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e, sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.

O dom de Jesus ao seu povo

285. Na cruz, quando Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27). Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem primariamente uma terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de revelação que manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus deixava-nos a sua Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação íntima entre Maria, a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira diversa geram Cristo, foi maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras divinamente inspiradas, o que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe, aplica-se em especial à Virgem Maria (...). Além disso, cada alma fiel é igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã, virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do mundo; no conhecimento e amor da alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».

286. Maria é aquela que sabe transformar um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde do Pai, que transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que não falte o vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida, abrindo os corações à fé com o seu afeto materno. Como uma verdadeira mãe, caminha conosco, luta conosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus. Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos santuários, compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o Batismo para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na ação materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que se pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes sacrifícios, vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram a força de Deus para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São João Diego, Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes: «Não se perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua Mãe?»

A Estrela da nova evangelização

287. À Mãe do Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para uma nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela é a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os novos discípulos se tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam as fases de aridez, de ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de “noite da fé” – para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. Foi deste modo efetivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».

288. Há um estilo mariano na atividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afeto. N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes. Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 52.53) é mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de justiça. E é a mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1, 39) da sua povoação para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração materna, para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança: «Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos confiantes para esta promessa, e dizemos-Lhe:

Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.

Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.

Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.

Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.

Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.

Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amém. Aleluia!

Dado em Roma, junto de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013, primeiro do meu Pontificado.

sábado, 18 de janeiro de 2014

1ª EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO - XII (Continuação)


Capítulo IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO



176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar». Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.


1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma

177. O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.

Confissão da fé e compromisso social

178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens». Confessar que o Espírito Santo atua em todos implica reconhecer que Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização procura colaborar também com esta ação libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda a ação evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma primeira e fundamental reação: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.

179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e um efetivo amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém considerar e meditar atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma mensagem a que frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas nossas comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e corresponde à misericórdia divina para conosco: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado (...). A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 36-38). Nestes textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio para o irmão», como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove.

O Reino que nos chama

180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita», uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33). O projeto de Jesus é instaurar o Reino de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está perto» (Mt 10, 7).

181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a evangelização não seria completa, se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens». É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.

A doutrina da Igreja sobre as questões sociais

182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objeto de discussão, mas não podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem social e consecução do bem comum».

183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».

184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais que afetam o mundo atual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar a refletir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem, com objetividade, a situação própria do seu país».

185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem fundamentais neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da humanidade. A primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo social.


2. A inclusão social dos pobres

186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade.

Unidos a Deus, ouvimos um clamor

187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor, quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da vontade do Pai e do seu projeto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre a nossa relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17). Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).

188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.

189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.

190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».

191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».

192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos». Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.

Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão

193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia, será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2, 12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12, 9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».

194. É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais hão-de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia” a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações».

195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gl 2, 2), o critério-chave de autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gl 2, 10). Este critério importante para que as comunidades paulinas não se deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande atualidade no contexto atual em que tende a desenvolver-se um novo paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.

196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distração que esta sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afeta a todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana».

O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus

197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).

198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles. Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja». Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza». Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.

199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro «considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efetivamente o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça». Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta».

200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.

201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades terrenas para que toda a atividade humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social: «A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos». Temo que também estas palavras sejam objeto apenas de alguns comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos caminhos para acolher esta renovada proposta.

Economia e distribuição das entradas

202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.

203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos.

204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos.

205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.

206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato econômico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns.

207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.

208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.

Cuidar da fragilidade

209. Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida.

210. Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetônico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!

211. Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.

212. Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias.

213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predileção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem».

214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?

215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afetem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos, formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insetos vivia no bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num baldio. (...) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»

216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.


3. O bem comum e a paz social

217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).

218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização social que silencie ou tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem. As reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são afetados, é necessária uma voz profética.

219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens». Enfim, uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.

220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida, configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa arrastada pelas forças dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação na vida política é uma obrigação moral». Mas, tornar-se um povo é algo mais, exigindo um processo constante no qual cada nova geração está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme.

221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja, que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência para a interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no mundo inteiro.

O tempo é superior ao espaço

222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.

223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes.

224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo atual, se preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época».

225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização, que exige ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada longa. O próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos seus discípulos que havia coisas que ainda não podiam compreender e era necessário esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o tempo.

A unidade prevalece sobre o conflito

226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.

227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!

228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste.

229. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade. O sinal distintivo desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Cl 1, 20). Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas diferenças é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela dispersão dialética. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será difícil construir uma verdadeira paz social.

230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer conflito numa nova e promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos da República Democrática do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».

A realidade é mais importante do que a ideia

231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.

232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso passar do nominalismo formal à objetividade harmoniosa. Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.

233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à encarnação da Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus». (1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que inculturaram o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado deste tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu dinamismo.

O todo é superior à parte

234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.

235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.

236. Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a sua cultura, os seus projetos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.

237. A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua riqueza plena incorpora académicos e operários, empresários e artistas, incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos. Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra no seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino. O todo é superior à parte.


4. O diálogo social como contribuição para a paz

238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá», oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não creem e convida a razão a alargar as suas perspectivas.

239. A Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa (cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o batizado a ser instrumento de pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada. É hora de saber como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projeto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento coletivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural.

240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos. Este papel exige, nas circunstâncias atuais, uma profunda humildade social.

241. No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas.

O diálogo entre a fé, a razão e as ciências

242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da ação evangelizadora que favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas». A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana. A fé não tem medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus», e não se podem contradizer entre si. A evangelização está atenta aos progressos científicos para os iluminar com a luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho de harmonia e pacificação.

243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências. Pelo contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se com rigor académico no campo do seu objeto específico, torna evidente uma determinada conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objeto formal da sua disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.

O diálogo ecuménico

244. O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena comunhão». Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de arado» (Is 2, 4).

245. Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família humana. A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.

246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os missionários, nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados pela violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem deveria ser um ativo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na ação livre e generosa do Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber informações sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para dar um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.

As relações com o Judaísmo

247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos, não podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos para se converter ao verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no único Deus que atua na história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada comum.

248. O diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos de Jesus. O afeto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e amargamente, as terríveis perseguições de que foram e são objeto, particularmente aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.

249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela justiça e o desenvolvimento dos povos.

O diálogo inter-religioso

250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles, compartilhando as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais. Os esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que, através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor à verdade.

251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as relações com os não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos quais não são donos. A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se e alimentam-se reciprocamente.

252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do Islão, hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde podem celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se deve jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus Cristo e Maria são objeto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.

253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afeto e respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afeto pelos verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência.

254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados ao mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da graça santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões sagradas que, por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do caminho para Deus. Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda a parte diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências da vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito também desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as nossas próprias convicções.

O diálogo social num contexto de liberdade religiosa

255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela liberdade religiosa, considerada um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade de escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria crença». Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias de agnósticos ou de não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.

256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco acadêmicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para justificar ações discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.

257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência». Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.

258. A partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro da humanidade, procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão social do anúncio do Evangelho, para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras, atitudes e ações