Capítulo IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA EVANGELIZAÇÃO
176. Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição
parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e
dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até
mesmo de a mutilar». Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas
com a dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão
não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o
sentido autêntico e integral da missão evangelizadora.
1. As repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio
coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros.
O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro
é a caridade.
Confissão da fé e compromisso social
178. Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir
que «assim lhe confere uma dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus
assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até
ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós
impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo
o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo,
não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os
homens». Confessar que o Espírito Santo atua em todos implica reconhecer que
Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O
Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe
prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e
impenetráveis». A evangelização procura colaborar também com esta ação
libertadora do Espírito. O próprio mistério da Trindade nos recorda que somos
criados à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem
salvar-nos sozinhos. A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão
íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve
necessariamente exprimir e desenvolver em toda a ação evangelizadora. A
aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo
com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas ações
uma primeira e fundamental reação: desejar, procurar e ter a peito o bem dos
outros.
179. Este laço indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e um efetivo
amor fraterno exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém considerar e
meditar atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma mensagem a
que frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos
assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas nossas
comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a
perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o
prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes»
(Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão transcendente:
«Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7, 2); e
corresponde à misericórdia divina para conosco: «Sede misericordiosos como o
vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis,
e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado
(...). A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6,
36-38). Nestes textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio
para o irmão», como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a
norma moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de
crescimento espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por
isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão
da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a
Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza
a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e
promove.
O Reino que nos chama
180. Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não
consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também
não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a
favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade
por receita», uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria
consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43);
trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir
reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de
paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência
cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino:
«Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará
por acréscimo» (Mt 6, 33). O projeto de Jesus é instaurar o Reino de seu
Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu está
perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos
recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do
verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a
evangelização não seria completa, se ela não tomasse em consideração a
interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida
concreta, pessoal e social, dos homens». É o critério da universalidade,
próprio da dinâmica do Evangelho, dado que o Pai quer que todos os homens se
salvem; e o seu plano de salvação consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo
n’Ele o que há no céu e na terra» (Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo
mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15),
porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a
revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa
também todos os aspectos da vida humana, de tal modo que «a missão do anúncio
da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de caridade
alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes
da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A
verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre
história.
A doutrina da Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos
a maiores ou novos desenvolvimentos e podem ser objeto de discussão, mas não
podemos evitar de ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que
os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam
ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que «possam
incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores,
acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir
opiniões sobre tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a
tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser
humano. Já não se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado
e serve apenas para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a
felicidade dos seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à
plenitude eterna, porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1
Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a
intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil,
sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem
ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e
da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que
nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa
passagem por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e
amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os
seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a
nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser
um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao mesmo
tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e
Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais que
afetam o mundo atual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este
não é um documento social e, para nos ajudar a refletir sobre estes vários
temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social
da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa
nem a Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o
que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão
diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como
o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição
nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem,
com objetividade, a situação própria do seu país».
185. Em seguida, procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões que me
parecem fundamentais neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa
amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da humanidade. A
primeira é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do
diálogo social.
2. A inclusão social dos pobres
186. Deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos
pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais
abandonados da sociedade.
Unidos a Deus, ouvimos um clamor
187. Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao
serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se
plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o
clamor do pobre e socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir
como o Pai bom quer ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu
povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores;
conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E
agora, vai; Eu te envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com
as suas necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o
Senhor enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor,
quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da
vontade do Pai e do seu projeto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra
ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta de
solidariedade, nas suas necessidades, influi diretamente sobre a nossa relação
com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou ouvirá a
sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta: «Se alguém
possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu
coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17).
Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a imagem do
clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes, aos trabalhadores
que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos ceifeiros
chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).
188. A Igreja reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria
obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma
missão reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia
e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder
com todas as suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de Jesus aos
seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37), que envolve
tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o
desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais simples e diários de
solidariedade para com as misérias muito concretas que encontramos. Embora um
pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a palavra «solidariedade»
significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a
criação duma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade
da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns.
189. A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social
da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à
propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e
aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade
deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde.
Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem
caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança
nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas
mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e
ineficazes.
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais
pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do
homem, mas também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os
direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada
dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a
independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o
planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto
de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não
justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os
mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem
colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para
falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e
abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio
país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos
tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a
desenvolver-se».
191. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e
circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos
do Brasil: «Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as
angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das
periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde
– lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e
conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe
alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e
da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas
de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e
civilização em seus múltiplos aspectos». Isto engloba educação, acesso
aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre,
criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a
dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros
bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao Evangelho, para não correr em vão
193. Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando
no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio.
Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para
que ressoem vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O Apóstolo
São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos sair
triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser
julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia,
será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2,
12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais
rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor
salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas
iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar
a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a literatura
sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os
necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12,
9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo
ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no
Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre
a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou profundamente
a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma resistência profética
como alternativa cultural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos
apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água
para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da
nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a
ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse
uma fonte que nos é oferecida e na qual podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma
hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre
estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas
antes ajudar a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão
simples? As elaborações conceptuais hão-de favorecer o contato com a realidade
que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as
exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao
serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus
ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com
os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com
não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso
de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia”
a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a
situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas
situações».
195. Quando São Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se
estava a correr ou tinha corrido em vão» (Gl 2, 2), o critério-chave de
autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gl
2, 10). Este critério importante para que as comunidades paulinas não se
deixassem arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma
grande atualidade no contexto atual em que tende a desenvolver-se um novo
paganismo individualista. A própria beleza do Evangelho nem sempre a
conseguimos manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a
opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
196. Às vezes somos duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos,
extasiamo-nos com as imensas possibilidades de consumo e de distração que esta
sociedade oferece. Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afeta a
todos, pois «alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social,
de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a
constituição dessa solidariedade inter-humana».
O lugar privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele
mesmo «Se fez pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está
assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem
humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O
Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos
mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta
de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2, 24; Lv
5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou com suas mãos para
ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No multidões de
deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O Espírito do Senhor
está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc
4, 18). A quantos sentiam o peso do sofrimento, acabrunhados pela pobreza,
assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração: «Felizes vós, os pobres,
porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6, 20); e com eles Se identificou:
«Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que a misericórdia para com eles é
a chave do Céu (cf. Mt 25, 34-40).
198. Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que
cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus «manifesta a sua
misericórdia antes de mais» a eles. Esta preferência divina tem consequências
na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos
que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a
Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de
primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da
Igreja». Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica
naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza».
Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos
ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores
conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por
eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas
vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a
descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas,
mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a
misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou em programas
de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um
excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro
«considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma
verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efetivamente
o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo
de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é
sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou
vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua aparência: «Do amor,
pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça».
Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e isto diferencia a
autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de
utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a
partir desta proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los
adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará possível que «os
pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”. Não seria, este
estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino?» Sem a opção
preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este anúncio é a primeira
caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de
palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta».
200. Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum
caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos
pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada
e prioritária.
201. Ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas
opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma
desculpa frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e
até mesmo eclesiais. Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão
próprias dos fiéis leigos é a transformação das diversas realidades terrenas
para que toda a atividade humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode
sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social: «A
conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela
justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a
todos». Temo que também estas palavras sejam objeto apenas de alguns
comentários, sem verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança
na abertura e nas boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis,
comunitariamente, novos caminhos para acolher esta renovada proposta.
Economia e distribuição das entradas
202. A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode
esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e
ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e
indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que
acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como
respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os
problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da
especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social,
não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A
desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam
estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices
adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem
programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram
molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale
de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta
que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade
dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da
justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma
manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas
questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A
vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum
com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis
a todos.
204. Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O
crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o
pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente
orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de
oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o
mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando
se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando
assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num
autêntico diálogo que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a
aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum.
Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não só das micro-relações
estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das
macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao
Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito
a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o
poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando
que haja trabalho digno, instrução e cuidados sanitários para todos os
cidadãos. E porque não acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos?
Estou convencido de que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia
formar uma nova mentalidade política e económica que ajudaria a superar a
dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social.
206. A economia – como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar
uma adequada administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o ato
econômico duma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta,
repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma
responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar
soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a
política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar
uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo
mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure
o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir
tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os
pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco
da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos.
Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas
religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo
com estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou
ideologia política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A
mim interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma
mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas
cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais
nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.
Cuidar da fragilidade
209. Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa,
identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40).
Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais
frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece
que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam
também singrar na vida.
210. Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e imediatos, é
indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e
fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem
abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada
vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial
para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos.
Por isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a
destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais.
Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que
são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são
encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetônico, estão cheias de
espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
211. Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes
formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a
todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão
escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica
clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade,
naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos
façamos de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas
nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as
mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão,
maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de
defender os seus direitos. E todavia, também entre elas, encontramos
continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e
cuidado da fragilidade das suas famílias.
213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predileção,
estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje
se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece,
tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir.
Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida
dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica,
obscurantista e conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está
intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de
que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada
etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver
outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às
conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é
suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas,
se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do
ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da
nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja
altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente
honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações».
Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida
humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar
adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o
aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias,
particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma
violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender
estas situações de tamanho sofrimento?
215. Há outros seres frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos
interesses económicos ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da
criação. Nós, os seres humanos, não somos meramente beneficiários, mas
guardiões das outras criaturas. Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos
tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como
uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se
fosse uma mutilação. Não deixemos que, à nossa passagem, fiquem sinais de
destruição e de morte que afetem a nossa vida e a das gerações futuras. Neste
sentido, faço meu o expressivo e profético lamento que, já há vários anos,
formularam os Bispos das Filipinas: «Uma incrível variedade de insetos vivia no
bosque; e estavam ocupados com todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam
pelo ar, as suas penas brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor
e melodia ao verde dos bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós,
suas criaturas especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num
baldio. (...) Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de
castanho-chocolate da tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue
vivo da terra para o mar. (...) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o
rio Pasig e muitos outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso
mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos
nós, cristãos, somos chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que
vivemos.
3. O bem comum e a paz social
217. Falámos muito sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona
também o fruto da paz (cf. Gal 5, 22).
218. A paz social não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de
violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma
paz falsa aquela que servisse como desculpa para justificar uma organização
social que silencie ou tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que
gozam dos maiores benefícios possam manter o seu estilo de vida sem
sobressaltos, enquanto os outros sobrevivem como podem. As reivindicações
sociais, que têm a ver com a distribuição das entradas, a inclusão social dos
pobres e os direitos humanos não podem ser sufocados com o pretexto de
construir um consenso de escritório ou uma paz efémera para uma minoria feliz.
A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de
alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são
afetados, é necessária uma voz profética.
219. E a paz também «não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio
sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida
por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens». Enfim,
uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá
futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220. Em cada nação, os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida,
configurando-se como cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa
arrastada pelas forças dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma
virtude, e a participação na vida política é uma obrigação moral». Mas,
tornar-se um povo é algo mais, exigindo um processo constante no qual
cada nova geração está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer
integrar-se e aprender a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro
numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade,
há quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a
realidade social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja,
que constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência para a
interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora
propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento
da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se
harmonizam dentro de um projeto comum. Faço-o na convicção de que a sua
aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no
mundo inteiro.
O tempo é superior ao espaço
222. Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a
vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O
«tempo», considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como
expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do
limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a
conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos
abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio
para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.
223. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos
resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e
hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um
convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo.
Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sociopolítica é privilegiar
os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço
leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para
tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar
os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais
com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços,
ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem
marcha atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na
sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até
frutificar em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com
convicções claras e tenazes.
224. Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo atual, se
preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo do que com
obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e
efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á
talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para
avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve
e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana,
de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época».
225. Este critério é muito apropriado também para a evangelização, que exige
ter presente o horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada longa. O
próprio Senhor, na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos seus
discípulos que havia coisas que ainda não podiam compreender e era necessário
esperar o Espírito Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do
joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de evangelização
que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar
dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o
tempo.
A unidade prevalece sobre o conflito
226. O conflito não pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas,
se ficamos encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se
e a própria realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura
conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade.
227. Perante o conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se
nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram
de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projetam
nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade
torna-se impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o
conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de
ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo, torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que
pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar
a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda.
Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir
a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida
no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de
construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os
opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é
apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num
plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades
em contraste.
229. Este critério evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e
terra, Deus e homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade.
O sinal distintivo desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo
«é a nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a
saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os
discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Cl 1, 20).
Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o
primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas
diferenças é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela
dispersão dialética. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será
difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a convicção
de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer
conflito numa nova e promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita
entrar constantemente num processo de reconciliação até selar uma espécie de
pacto cultural que faça surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente
ensinaram os Bispos da República Democrática do Congo: «A diversidade das
nossas etnias é uma riqueza. (…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a
reconciliação é que poderemos fazer avançar o nosso país».
A realidade é mais importante do que a ideia
231. Existe também uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade
simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um
diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É
perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que
postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe
evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os
totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais
formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem
bondade, os intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação,
compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a
idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem,
mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É
preciso passar do nominalismo formal à objetividade harmoniosa. Caso contrário,
manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela
cosmética. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por
que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão
lógicas e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras
ideias e reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a
simplicidade e importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.
233. A realidade é superior à ideia. Este critério está ligado à encarnação da
Palavra e ao seu cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus por isto:
todo o espírito que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus».
(1 Jo 4, 2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre
procurando encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a
valorizar a história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos
Santos que inculturaram o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica
tradição bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado
deste tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este
critério impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e
caridade nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar
à realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e
degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu
dinamismo.
O todo é superior à parte
234. Entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso
prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade.
Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar
com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes
dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstrato e
globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de
artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados;
o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas
localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se
deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha
fora das suas fronteiras.
235. O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma
delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e
particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que
trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se
desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do
próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está
próximo, mas com uma perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que
conserva a sua peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se
integra cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos
estímulos para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que
aniquila, nem a parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada
ponto é equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o
outro. O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as partes que
nele mantêm a sua originalidade. Tanto a ação pastoral como a ação política
procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a
sua cultura, os seus projetos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as
pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não
se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua
própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um
bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós, cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou
integridade do Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua
riqueza plena incorpora académicos e operários, empresários e artistas,
incorpora todos. A «mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e
encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de
festa. A Boa Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus
pequeninos. Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e
a reintegra no seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e
cidade que brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho
possui um critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa
Nova enquanto não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as
dimensões do homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino.
O todo é superior à parte.
4. O diálogo social como contribuição para a paz
238. A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste momento,
existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente,
cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e
procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui
o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem
parte da Igreja Católica. Em todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que
a fé lhe dá», oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na
memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão
humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não creem e
convida a razão a alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à
colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar
deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa
(cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o batizado a ser
instrumento de pacificação e testemunha credível duma vida reconciliada. É hora
de saber como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de
encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por
uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. O autor principal, o
sujeito histórico deste processo, é a gente e a sua cultura, não uma classe,
uma fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projeto de poucos para
poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um
sentimento coletivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto
social e cultural.
240. O cuidado e a promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este,
com base nos princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande
esforço de diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel
fundamental – que não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral
de todos. Este papel exige, nas circunstâncias atuais, uma profunda humildade
social.
241. No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para
todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais,
acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e
ao bem comum. Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da
existência humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em
ações políticas.
O diálogo entre a fé, a razão e as ciências
242. O diálogo entre ciência e fé também faz parte da ação evangelizadora que
favorece a paz. O cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como
válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das
ciências positivas». A Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre
um uso responsável das metodologias próprias das ciências empíricas e os outros
saberes como a filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até
ao mistério que transcende a natureza e a inteligência humana. A fé não tem
medo da razão; pelo contrário, procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da
razão e a luz da fé provêm ambas de Deus», e não se podem contradizer entre si.
A evangelização está atenta aos progressos científicos para os iluminar com a
luz da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a centralidade
e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua existência. Toda a
sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que abre novos horizontes
ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também este é um caminho de
harmonia e pacificação.
243. A Igreja não pretende deter o progresso admirável das ciências. Pelo
contrário, alegra-se e inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial
que Deus deu à mente humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se com
rigor académico no campo do seu objeto específico, torna evidente uma
determinada conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os
crentes podem pretender que uma opinião científica que lhes agrada – e que nem
sequer foi suficientemente comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em
certas ocasiões, porém, alguns cientistas vão mais além do objeto formal da sua
disciplina e exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o campo da
própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma determinada
ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.
O diálogo ecuménico
244. O compromisso ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que
todos sejam um só» (Jo 17, 21). A credibilidade do anúncio cristão seria
muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse
«a plenitude da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora
incorporados pelo Baptismo, estão separados da sua plena comunhão». Devemos
sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso,
devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças,
e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O
abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos:
«Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós,
cumpre-se a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de arado»
(Is 2, 4).
245. Sob esta luz, o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família
humana. A presença no Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade
Bartolomeu I, e do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas Williams,
foi um verdadeiro dom de Deus e um precioso testemunho cristão.
246. Dada a gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo
na Ásia e na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os
missionários, nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e
sarcasmos que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos
concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da
hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de
anúncio, de serviço e de testemunho. A imensa multidão que não recebeu o
anúncio de Jesus Cristo não pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço
por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera
diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível
da evangelização. Os sinais de divisão entre cristãos, em países que já estão
dilacerados pela violência, juntam outros motivos de conflito vindos da parte
de quem deveria ser um ativo fermento de paz. São tantas e tão valiosas as
coisas que nos unem! E, se realmente acreditamos na ação livre e generosa do
Espírito, quantas coisas podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas
de receber informações sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de
recolher o que o Espírito semeou neles como um dom também para nós. Só para dar
um exemplo, no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a
possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade
episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de
dons, o Espírito pode conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações com o Judaísmo
247. Um olhar muito especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus
nunca foi revogada, porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm
11, 29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das
Escrituras Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz
sagrada da própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos,
não podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os
judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos para se converter ao
verdadeiro Deus (cf. 1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no
único Deus que atua na história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada
comum.
248. O diálogo e a amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos
discípulos de Jesus. O afeto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e
amargamente, as terríveis perseguições de que foram e são objeto,
particularmente aquelas que envolvem ou envolveram cristãos.
249. Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros
de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a
Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora
algumas convicções cristãs sejam inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não
possa deixar de anunciar Jesus como Senhor e Messias, há uma rica
complementaridade que nos permite ler juntos os textos da Bíblia hebraica e
ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da Palavra, bem como
compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum pela justiça e o
desenvolvimento dos povos.
O diálogo inter-religioso
250. Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo
com os crentes das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e
dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este
diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por
conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades
religiosas. Este diálogo é, em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana
ou simplesmente – como propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles,
compartilhando as suas alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros,
na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método,
poderemos assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá
tornar-se um critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se
procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto
meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais. Os
esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que,
através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e
enriquecimento. Portanto, estes esforços também podem ter o significado de amor
à verdade.
251. Neste diálogo, sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo
essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as
relações com os não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um
totalitarismo de quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os
transcendem e dos quais não são donos. A verdadeira abertura implica
conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade
clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o
diálogo pode enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura diplomática que
diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro
e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade.
Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se
e alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do Islão,
hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde podem
celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se deve
jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o
Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os
escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus
Cristo e Maria são objeto de profunda veneração e é admirável ver como jovens e
idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à
oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos
deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de
Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um
compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253. Para sustentar o diálogo com o Islão é indispensável a adequada formação
dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na
sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos
outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer
aparecer as convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afeto e
respeito os imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como
esperamos e pedimos para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição
islâmica. Rogo, imploro humildemente a esses países que assegurem liberdade aos
cristãos para poderem celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a
liberdade que os crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a
episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afeto pelos
verdadeiros crentes do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações,
porque o verdadeiro Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a
toda a violência.
254. Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa
divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados ao
mistério pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da
graça santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos,
expressões sagradas que, por sua vez, envolvem outros numa experiência
comunitária do caminho para Deus. Não têm o significado e a eficácia dos
Sacramentos instituídos por Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito
suscita para libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências
religiosas meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda a parte
diferentes formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências da
vida e a viver com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito
também desta riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a
viver melhor as nossas próprias convicções.
O diálogo social num contexto de liberdade religiosa
255. Os Padres sinodais lembraram a importância do respeito pela liberdade
religiosa, considerada um direito humano fundamental. Inclui «a liberdade de
escolher a religião que se crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a
própria crença». Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que
pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das
religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da
consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas,
sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de
discriminação e autoritarismo. O respeito devido às minorias de agnósticos ou
de não-crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as
convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No
fundo, isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso
distinguir diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os
jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco
acadêmicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são
capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes
religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para
justificar ações discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que
surgiram no âmbito duma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos
clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força
motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece
a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será
razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no
contexto duma crença religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que
possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas
religiosos.
257. Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se
reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a
verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a
sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela
defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os
povos e na guarda da criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos,
como o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os
temas fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da
transcendência». Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de alguns temas sociais, importantes para o futuro da humanidade,
procurei explicitar uma vez mais a incontornável dimensão social do anúncio do
Evangelho, para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas
palavras, atitudes e ações