Trocando-se
palavras, por exemplo, trocam-se conceitos e formas de pensamento, como já
avisava George Orwell em sua distópica obra “1984”. Alguns conceitos
importantes são suprimidos e outros, de menor importância, são elevados à
categoria de princípios de grande destaque. Isso acontece no dia a dia quando
somos submetidos à propaganda ou a campanhas diversas, porém quando tais
“termos manipulados” lidam diretamente com nossa vida e com os parâmetros pelos
quais julgamos tudo o que nos cerca, estamos mexendo perigosamente com as
fundações de nossa civilização.
O simples expediente de chamar uma coisa
pelo nome de outra pode gerar alterações profundas na percepção e na prática da
medicina e na sociedade como um todo. O exemplo aqui citado é o da troca da
palavra “infanticídio” (ou assassinato de bebês, se preferir) pelo termo
“aborto pós-nascimento”.
Uma breve análise dessa troca, utilizando
as ferramentas, descritas de forma sintética por Pascal Bernardin em seu livro
Maquiavel Pedagogo, pode chocar pela obviedade de tal
operação e pelos possíveis resultados, mesmo que não intencionados pelos
autores de tal proposta.
A troca de nomes (infanticídio por aborto)
foi proposta por membros da comunidade acadêmica, que discutiam em círculo
discreto há cerca de quarenta anos. Em suas discussões, recortes abstratos de
conceitos importantes, amplos e, muitas vezes escorregadios, como o de
“pessoa”, dão origem a uma série de conclusões que aos poucos ganham força e
projeção em meios especializados.
Os fatos de que tais discussões são
geradas e mantidas por autoridades acadêmicas, e que tais autoridades circulam
em meio à comunidade de estudantes e pesquisadores com grande destaque, já
bastam para que haja um forte contexto de convencimento acerca de sua
razoabilidade. Adicione isto a um periódico bem qualificado internacionalmente
- onde autores se esforçam para publicar e ganhar notoriedade científica - e o
palco está armado.
Juntando isso ao eufemismo proposto,
completa-se um importante conjunto de atividades com alto potencial de mudança
social. O eufemismo de um ato extremamente repudiado pelas pessoas comuns configura
ao mesmo tempo dois recursos psicológicos básicos na arte de convencer. Chamar uma coisa grotesca como matar um
bebê por um nome de algo menos repudiado, como um abortamento, pode ser
considerado um recurso do tipo “pé-na-porta”, onde o ouvinte corre o risco de
aceitar 12 escutando meia dúzia. Por outro lado, o mero fato de se discutir
infanticídio como algo racional já pode induzir o efeito “porta-na-cara”, no
qual um repúdio imediato pode dessensibilizar aqueles menos perceptivos e gerar
uma maior aceitação de atos aparentemente menos grotescos como o de abortar um
feto.
Tudo isso ao lado de medidas
governamentais - obrigando médicos a realizar o abortamento - pode levar
inevitavelmente ao que se chama de dissonância cognitiva, onde há uma mudança
de pensamento e de valores após realizar um ato do qual se discordava
previamente, mudança esta causada pela racionalização e introjeção do
comportamento realizado. O comportamento alterado pode ser simples como chamar
uma coisa por outro nome, e complexo como executar um ato cirúrgico imoral.
Resumindo: junte a Submissão à Autoridade,
o Conformismo Grupal, o Pé-na-Porta, o Porta-na-Cara, a Dissonância Cognitiva,
a Imposição Governamental e o reforço de tudo isso por “formadores de opinião”,
e você obterá um forte elemento de guerra cultural em ação.
Quando os autores do artigo que propunha a
troca do termo "infanticídio" por "abortamento
pós-nascimento" foram respondidos por centenas de protestos e mensagens de
repúdio, muitas vezes com alto teor de agressividade, o estrago já estava
feito. Eles, de certa forma, se desculparam dizendo que tudo não passa de um
debate de ideias. Mas quantos crimes horrendos não começaram com simples
debates de ideia?
O leite está derramado e incontáveis atos
de manipulação semântica chegam aos nossos ouvidos a cada dia, trocando
valores, camuflando intenções e propondo novas cosmovisões. O mínimo que se
pode fazer é permitir um espaço para uma verdadeira altercação intelectual,
onde tais venenos sutis possam se transformar em poderosas vacinas, e onde
propostas agressivas com palavras suaves possam ser respondidas de forma clara
e direta.
Hélio Angotti Neto é médico
oftalmologista com graduação pela Universidade Federal do Espírito Santo e
residência médica e doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo.
Coordena o curso de medicina do Centro Universitário do Espírito Santo
(UNESC-ES) e é o diretor da seção especializada em humanidades médicas da
revista Mirabilia. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, do Conselho
Brasileiro de Oftalmologia, do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC, do Center
for Bioethics and Human Dignity, da Associação Brasileira de Educação Médica. Coordena
o SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina).
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