A astúcia dos ideólogos vem permitindo que,
até dentro da Igreja, por conta do relativismo, muitos deixem de dar a devida
importância sobre essas questões que aqui estamos tratando.
Nesta semana, exatamente em 28 de outubro, celebramos os dez anos de fundação do nosso Movimento Legislação e Vida, na Diocese de Taubaté, na cidade de São Bento do Sapucaí, atendendo ao apelo feito pelo papa São João Paulo II na encíclica Evangelium Vitae, exortando-nos para afirmar a cultura da vida, em meio a forças tão adversas que se intensificam contra a vida e a família, forças também anticristãs, que requer de nós maior oração e vigilância e ainda ação propositiva [ora et labora], para o combate que se faz necessário a esta conjura contra a vida, que vem assumindo proporções enormes, em nossos dias, e em quase todas as partes do mundo. Daí ser significativo o nome do movimento que organiza esse encontro, que se propõe à reflexão de aspectos dessa conjura contra a vida, expressa em “ideologias do mal”, que exige de nós prontidão, disponibilidade, solicitude, fidelidade ao chamado do Senhor, ao Evangelho da Vida, que requer de nós que estejamos em “sentinelas”, com a lareira acesa, empunhado com o archote da vida, pois será cobrado de nós, sabemos disso, de cada um de nós, enquanto cristãos, do nosso posicionamento diante dos desafios que aí estão, da nossa resposta ao chamado do Senhor pela defesa da vida e da família.
Sabemos que a cultura da morte, forjada,
fomentada e disseminada por potências econômicas e políticas [cujo diagnóstico
de suas causas históricas e pressupostos filosóficos tem sido explicitado em
várias exposições públicas feitas ultimamente e estão disponíveis no Youtube],
por isso, quero aqui, neste encontro, junto com o meu professor de Bioética,
dom Antonio Augusto Dias Duarte, recentemente integrado à Associação Nacional
Pró-Vida e Pró-Família, fazer uma breve reflexão sobre a questão da ideologia,
e como nós, enquanto Igreja somos chamados a enfrentar a cultura da morte,
combatendo a ideologia que dá expressão a esta cultura, uma ideologia
contextualizada “na grande crise moral do mundo ocidental, considerado como o
mundo cristão”, uma ideologia que se volta contra a natureza humana, a verdade
sobre a realidade do que é o ser humano; uma ideologia portanto, inumana e
anticristã, porque os fatos comprovam que o cristianismo é o que está mais
comprometido com a defesa da dignidade da vida humana, em toda a sua inteireza.
E como toda ideologia, que parte de falsas premissas filosóficas, torna-se
perigosa pelo seu efeito de corrosão dos valores humanos, pelo seu poder de
destruição, de condenação a um estilo de vida equivocado, que trai o verdadeiro
sentido da vida, seduzindo os incautos a uma falsa concepção de liberdade, que
de modo algum resulta na felicidade, pelo contrário, na angústia de um desvio,
que resulta no próprio absurdo, da vida sem sentido, sem direção à sua
verdadeira finalidade. Por isso, o cristianismo se opõe a estes enganos,
porque “a condenação é o antônimo da salvação”, e a “soteriologia cristã é uma
soteriologia da vida em plenitude [na dimensão última e definitiva, por isso
rezamos no Credo: “Cremos na vida eterna], esta que é a soteriologia do Divino Amor. E mesmo sabendo que “embora de corpo e alma
totalmente voltado para a vida eterna, para a felicidade que se encontra no
próprio Deus, o Cristianismo, e especialmente o cristianismo ocidental, nunca
se mostrou indiferente em face do mundo. Sempre esteve aberto ao mundo, às suas
interrogações, às suas inquietudes, às suas expectativas”. Por isso a nossa
convicção, e a nossa esperança, com o realismo cristão, de que – como disse
Ratzinger – “a fé cristã tem muito mais futuro do que as ideologias que a
convidam a abolir a si mesma”. Sabemos disso e cremos nisso firmemente.
Por isso, quando falamos de vida, da
cultura da vida, nos referimos à verdade da vida plena, que começa aqui a ser
edificada e decidida, pois começamos aqui o que seremos na eternidade. E as
ideologias que se ancoram na falsidade e no abuso de poder, comprometem o corpo
e a alma do ser humano [a pessoa por inteiro], e é justamente isso, na atual
fase de conjura contra a vida, que os forjadores de tais ideologias
querem atingir: o âmago do que somos e à verdadeira felicidade em nossa
destinação final, pois destinados estamos todos à vida eterna, somos
então chamados hoje, enquanto Igreja, a discernir aqui e agora, sobre tais
enganos e perigos, e a tomar a decisão pela vida [“Escolhe, pois a vida!”, Det.
30, 19], a afirmar a cultura da vida, no combate a estas ideologias,
especialmente, a ideologia de gênero.
Para Jorge Scala, é “a ideologia mais
radical da história”, que visa destruir “o ser humano em seu núcleo mais
íntimo”, e também “é a mais sutil porque não procura se impor pela força das
armas (…) mas utilizando a propaganda para mudar as mentes e os corações dos
homens”. E ainda porque “é necessariamente ambígua. Utiliza o engano como um
meio imprescindível para alcançar sua finalidade. A razão é óbvia: aquele que
pretende usar os outros em seu próprio benefício não pode dizê-lo abertamente”.
Daí utiliza-se da “manipulação da linguagem”, daí a profunda revolução cultural
em curso, pois “a cultura tem como base a linguagem, que é um dado natural, só
próprio do ser humano”.
E tudo isso para promover uma reengenharia
social global, alterando o significado das coisas, atribuindo novos
significados às palavras, mudando-lhes o conteúdo, para evitar toda e qualquer
resistência consciente à esta agenda antivida e antifamília, a agenda de
gênero (que emergiu a partir dos anos 90, nas grandes conferências
internacionais da ONU), agenda esta que pretende implementar “em todos os
programas, em todos os níveis e em todos os países”, e “impor uma nova
antropologia, que é a origem de uma nova cosmologia e que provoca uma mudança
total nas pautas morais da sociedade”, aliás uma agenda inteiramente amoral e
imoral, imbuída de darwinismo social e eugenismo, por uma lógica que faz da
ideologia de gênero “uma ferramenta de poder”, vulnerabilizando as pessoas,
fragilizando-as, destituinda-as de humanidade, atomizando a sociedade, para o
melhor controle e manipulação social. Por que tais ideologias, ao se utilizarem
da manipulação para seus fin, exercem a pior forma de poder, e a pior forma de
violência; pois, como explicou Mário Stoppino, “a manipulação é um fenômeno
unívoca e insofismavelmente negativo. Entre todas as formas de poder, é ela que
acarreta mais grave condenação moral. Tem-se afirmado, por exemplo, que ela constitui
a face mais ignóbil do poder’ é a forma mais inumana de violência’ ou quem dela
é vítima, ‘é espoliado da alma’”. E a ideologia de gênero provoca justamente
isso: a ‘espoliação da alma’ ao violentar o corpo, negando a verdade de sua
natureza, enquanto natureza humana. Há aí a transgressão.
Daí que a “grande crise moral do mundo
ocidental, considerado cristão” é decorrente da corrosão provocada por tais
ideologias, e de modo mais grave pela ideologia de gênero: uma crise que ameaça
a família, “até nas suas próprias bases. ”Crise que se agudizou quando tais
ideologias visaram minar a unidade familiar, o que sublinhou o papa Bento XVI,
no discurso de Natal à Cúria Romana, em 2012, falando sobre “a profunda
falsidade” da ideologia de gênero, dizendo que “na questão da família, não está
em jogo meramente uma determinada forma social, mas o próprio homem: está em
questão o que é o homem e o que é preciso fazer para ser justamente
homem”.
Ainda
naquele pronunciamento, ele ressaltou:
“Se antes tínhamos visto como causa da
crise da família um mal-entendido acerca da essência da liberdade humana,
agora torna-se claro que aqui está em jogo a visão do próprio ser, do que
significa realmente ser homem.” E menciona “o célebre aforismo de Simone de
Beauvoir: ‘Não se nasce mulher; fazem-na mulher – On ne naît pas femme, on
le devient’. Nestas palavras, manifesta-se o fundamento daquilo que hoje,
sob o vocábulo ‘gender – gênero’, é apresentado como nova filosofia da
sexualidade. De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado
originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de
significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente, enquanto
até agora era a sociedade quem a decidia. Salta aos olhos a profunda falsidade
desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. O homem
contesta o fato de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade,
que caracteriza o ser humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que
esta não lhe é dada como um facto pré-constituído, mas é ele próprio quem
a cria.”
E
ainda, num outro momento, explicou lucidamente que:
“A
ideia de libertação – se pudermos chamar de liberdade o denominador fundamental
da espiritualidade moderna e do nosso século – também se fundiu com a ideologia
feminista. A mulher é considerada o ser oprimido por excelência; por essa
razão, a libertação da mulher é o núcleo de toda atividade de libertação. Aqui
se ultrapassou, por assim dizer, a teologia da libertação política com uma
antropológica. Não se pensa apenas na libertação dos vínculos próprios ao papel
da mulher, mas na libertação da condição biológica do ser humano. Distingue-se
então o fenômeno biológico da sexualidade das suas expressões históricas, às
quais se chama gênero, mas a revolução que se quer provocar contra toda forma
histórica da sexualidade conduz a uma revolução que também é contra as
condições biológicas; já não pode haver dados naturais; o Homem deve poder
moldar-se arbitrariamente, deve ser livre de todos os condicionalismos do seu
ser; ele próprio se torna o que quer, e só desse modo é realmente livre e está
libertado. Por trás disso, encontramos uma revolta do homem contra os limites
que o seu ser biológico envolve. Trata-se, por fim, de uma revolta contra a
própria condição de criatura. O Homem deve ser o criador de si mesmo – uma nova
edição, moderna, da velha tentativa de ser Deus, de ser como Deus”.
E
acrescenta que:
“Na luta pela família, está em jogo o próprio
homem. E torna-se evidente que, onde Deus é negado, dissolve-se também a
dignidade do homem. Quem defende Deus, defende o homem.”
Ideologias
e abusos de poder
As
ideologias que se voltam contra o ser humano é uma constante na história, desde
a Antiguidade até os dias de hoje. A Sagrada Escritura relata sistemas
opressores que foram sucumbidos [Moisés diante do faraó é um exemplo clássico
disso!], sistemas que fizeram as suas vítimas. Assim como hoje, as ideologias
fazem as suas vítimas, por isso precisamos estar em sentinela, para evitar tais
danos. Toda e qualquer ideologia, nesse sentido, é resultado de abusos do
poder, e a história mostra as consequências dolorosas de tais abusos. Estive,
ainda neste mês, na Polônia e pude constatar as evidências materiais expostas
das vítimas que sofreram e morreram no campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau. Foi terrível a constatação de tanto sofrimento, decorrente
de uma ideologia expressa numa das piores formas de totalitarismo. Mas
enganam-se os que pensam que estamos imunes de tais formas de totalitarismos,
porque hoje justamente tais ideologias – como a ideologia de gênero – pode
favorecer um totalitarismo pior ainda, porque mais sutil e sofisticado, a
vitimar o corpo e a alma daqueles que deixarem ser subjugados por tal
ideologia.
A própria Simone de Beauvoir entendeu que
“a infância é a chave de toda existência”, por isso é que devemos proteger a
infância, para que as nossas crianças não sejam as maiores vítimas dessa
ideologia. Por isso, até mesmo dentro da Igreja, os ateus militantes querem
acabar com a catequese, porque imbuídos de tais ideologias, querem minar a sã
doutrina católica, porque sabem da força do cristianismo, para vencer tais
ideologias.
Sabemos pela história, do esforço de
“desmantelamento do cristianismo pela filosofia crítica4, com “a
ambição de mudar a realidade”, falseando-a com o idealismo, premissa de muitas
destas ideologias, que adotam “premeditadamente a tática da ambiguidade”. A
partir do mote “biologia não é destino”, para justificar que o “ser é
fazer-se ser”, no referencial reducionista que descarta a realidade
sobrenatural, para justificar a satisfação de todo prazer e de todo poder,
porque só nesta lógica darwinista, desprovida de Deus, é possível o mais forte
subjugar o mais fraco, para a satisfação de todos os desejos, de todas as
transgressões e perversões.
A lógica da ideologia de gênero é utópica,
idealista e portanto irrealista, pois tem como objetivo final “a completa
eliminação das diferenças sexuais nos seres humanos, como pressuposto para um
‘mundo novo’”, e “para isso se consegue eliminando o casamento e a família
tradicional. Isso se consegue fazendo lésbicas homossexuais e bissexuais desde
o berço. O sexo é unicamente para o prazer. As relações sexuais devem ser
polimorfas e livres. O aborto, livre também. Tudo vale neste novo mundo do
gênero”.
“Não
nos deixeis cair em tentação”
Sabemos também, enquanto cristãos, o que
rezamos com a petição que fazemos no Pai Nosso: “e não nos deixemos cair em
tentação”. E tais ideologias, dentre elas a perversa ideologia de gênero, é
expressão de uma gravíssima tentação, que conduz a uma queda do ser, da sua
humanidade, por isso a petição seguinte: “livrai-nos do mal”, justamente porque
“o núcleo de toda tentação – isso se torna visível aqui – é colocar Deus de
lado, o qual junto com às questões urgentes da nossa vida aparece como algo
secundário”.
E
mais, nos diz Bento XVI:
“Pertence
a essência da tentação o seu aspecto moral: ela não nos convida diretamente
para o mal, isso seria grosseiro. Ela pretende mostrar o que é melhor para nós:
pôr finalmente de lado as ilusões e dedicar-se de todas as formas à melhoria do
mundo”32. É a utopia de todos os idealismos, assim com esta utopia,
da satisfação total dos desejos, da transgressão total, tendo Deus “como uma
ilusão: aqui está a tentação que de muitas formas hoje nos ameaça”.
Com discernimento, que é dom do Espírito
Santo, temos que aprofundar os nossos estudos dessa problemática, pela sua
complexidade, para encontrar os meios adequados para uma evangelização que
também não esteja imbuída desta ambiguidade, porque temos visto também, até
mesmo entre católicos, uma dificuldade crescente de fazer com que a sã doutrina
seja compreendida, por causa da ideologização da fé, e da instrumentalização da
Igreja, em certos casos e por certos segmentos, também para fins contrários à fé
cristã. A astúcia dos ideólogos vem permitindo que, até dentro da Igreja, por
conta do relativismo, muitos deixem de dar a devida importância sobre essas
questões que aqui estamos tratando, por justamente carecer de solidez
doutrinal, capaz do discernimento que se faz necessário, em meio a todos esses
desafios da atualidade. Muitas vezes, em decorrência da ideologização da fé,
esvazia-se o conteúdo do que é essencial, e então, “os vocábulos da fé e da
mensagem católica continuam a ser proferidos, mas com sentido totalmente
diverso daquele que lhes é dado na autêntica teologia”. Por isso, um encontro
como este permite alargarmos o horizonte, nesta partilha de informações, para
que estejamos mais dispostos e convencidos do quanto urge não estarmos omissos
diante dessas ameaças, e o quanto o nosso tempo vem exigindo de nós, reafirmar
aquela decisão fundamental; “Escolhe, pois, a Vida!”
Prof. Hermes Rodrigues Nery é
especialista em Bioética (pela PUC-RJ), Presidente da Associação Nacional
Pró-Vida e Pró-Família.| 05 Novembro 2015
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